Arte Popular

A constituição e a consolidação de técnicas artesanais no Brasil são o resultado de transculturações entre índios, negros e brancos ocorridas ao longo de quatro séculos. A partir do século XIX, a imigração européia trouxe para a cultura nacional novos aportes, como o dos italianos, alemães, poloneses e pomeranos que, junto aos grandes grupos étnicos de japoneses, sírios e libaneses, incorporaram ao cotidiano um elenco de práticas culturais que se refletiram em inúmeros e diferentes aspectos da cultura material do País.
No período colonial, particularmente no caso único da urbanização das cidades do ouro de Minas Gerais, o aspecto religioso das corporações de artífices aparece com clareza através da sua estreita ligação com irmandades e ordens terceiras. Entre outros fatores, a forte miscigenação responde pela presença numerosa de mestiços artesãos de grande apuro técnico, constituindo uma classe servil, mas livre, entre outros motivos porque a comprovação de destreza em certos ofícios equivalia em muitos casos a uma carta de alforria. Nesse período, também a presença de artistas jesuítas e franciscanos na construção de templos e aldeamentos indígenas foi uma matriz importante para a formação de artífices da terra.
No final do século XVIII e na primeira metade do XIX começou a emergir a noção de autoria entre artistas de grande inventividade, como é o caso, em Minas Gerais, do Aleijadinho (1738-1814), gênio do barroco, e do pintor Manuel da Costa Athayde, seu contemporâneo (1762-1830). Até então, ainda eram fluidos os limites entre arte e artesanato, como se pode ver pela simultaneidade das funções de pintor e dourador num mestre Athayde, que fazia encarnação de imagens, prateamento e douração da talha, ao lado de belíssimas composições ilusionistas para os grandes forros e painéis parietais das igrejas.
Ao mesmo tempo, seriam raros os douradores capazes de candidatar-se à pintura das "visões" dos grandes tetos dos templos, o que desenha uma certa gradação entre arte e artesanato. São fronteiras fluidas, mas reais, que permanecem até hoje, como mostram os trabalhos de um José Antonio da Silva, um Antonio Batista de Souza (Antonio Poteiro) e um Geraldo Teles de Oliveira (o G.T.O), ao lado da produção da louça de barro ou da tecelagem geradas por comunidades de artífices. O que não significa que o artesão popular não esteja sempre deixando a marca da sua pessoa e da sua mão no recriar cotidiano da tradição.
Com a geração dos escritores árcades, contemporânea de Aleijadinho, patenteia-se um crescente sentimento nativista, um olhar mais próximo sobre a terra, que formará as bases, entre nós, para o movimento em nível nacional do Romantismo, no século XIX. Deu-se aí, como de resto em todo o mundo ocidental, a revolta contra o Iluminismo do século anterior. A relação entre igualdade/liberdade, de corte quantitativo, foi substituída por uma outra, qualitativa, que privilegiou a singularidade/liberdade. Os românticos foram os primeiros a enfatizar a particularidade e as expressões regionais das sociedades históricas.
Ao avançar o século XIX, a geração dos românticos foi a primeira a manifestar um interesse mais amplo, ainda que idealizado, pelas culturas dos índios, dos negros e dos sertanejos. Os poetas e escritores românticos se voltaram para a questão do negro, militando pela abolição da escravidão, descrevendo a natureza tropical e recorrendo a uma imagem do índio idealizada, mas de intenção recuperadora. No final do século, ainda que despreparados para dar conta do seu significado e do seu valor plástico peculiar, historiadores começaram a registrar a criação visual das camadas pobres, como aconteceu com as carrancas do Rio São Francisco.
No âmbito da literatura tiveram origem os primeiros trabalhos de folclore. Foi a partir de críticos e historiadores como Silvio Romero (1851-1914) que a cultura popular passou a receber um tratamento mais digno e a ser avaliada com maior objetividade. Romero foi o verdadeiro fundador dos estudos de folclore no Brasil. Mais moço que ele, porém, seu contemporâneo Euclides da Cunha (1888-1909) escreveu o notável Os Sertões, onde a sociedade brasileira é retratada através do episódio messiânico-sertanejo de Canudos.
Aproximadamente uma década após a morte de Romero e de Euclides, já estava formada a geração dos modernistas brasileiros, que ganharam expressão pública na Semana de Arte Moderna de 22. Esta geração partiu para a descoberta do Brasil sem discriminar entre o "popular" e o "culto", procurando evidenciar a dimensão relacional que sempre existira entre esses universos. Hoje, estudiosos consagrados da história das mentalidades, como Peter Burke e Carlo Ginzburg, demonstram que sempre houve, na Europa moderna (1500-1800), uma circularidade, um vaivém, um permanente movimento de mão dupla, de "subida" e "descida" extremamente enriquecedor entre os níveis da "cultura alta" e a do "povo comum".
Os modernistas brasileiros se deram conta deste fenômeno. Mário de Andrade, expoente do pensamento da sua geração, escreveu em relação ao recalque do "popular" pelas classes altas: "Há que forçar um maior entendimento mútuo, um maior nivelamento (leia-se equilíbrio) geral da cultura que, sem destruir a elite, a torne mais acessível a todos, e em conseqüência lhe dê uma validade verdadeiramente funcional. Está claro, pois, que o nivelamento não poderá consistir em cortar o tope ensolarado das elites, mas em provocar com atividade o erguimento das partes que estão na sombra, pondo-as em condição de receber mais luz".
Um dos objetivos fundamentais do movimento modernista era, portanto, estruturar os meios que pudessem atender à coletivização - à democratização - do saber, num país onde este era discriminado entre o "culto" e o "popular". Mário e vários modernistas inclinaram-se para o exame das diversidades existentes em nossa terra, que aos poucos foram formando um corpo coerente de referência. Queriam entender a arte popular de hoje como um todo, relacionando-a com a sociedade. Os modernistas das gerações de 22 e de 30 viram ainda nascer a Escola de Sociologia e Política de São Paulo (1933), a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (1934) e a Universidade do Distrito Federal, no Rio de Janeiro (1935), que passaram a conferir os padrões científicos da antropologia às áreas do saber até então limitadas aos estudos de folclore.
Em 1947, ano em que a Comissão Nacional de Folclore foi criada pelo modernista Renato Almeida, o pintor Augusto Rodrigues organizou no Rio de Janeiro uma mostra do mestre Vitalino - Vitalino Pereira dos Santos - que veio a ser conhecido como um dos maiores artistas-ceramistas do País. Depois que escritores, pintores, músicos, arquitetos, antropólogos e historiadores, sem deixar de voltar-se para o universal e a criação de vanguarda, debruçaram-se de maneira mais próxima sobre a realidade brasileira, procurando nela os elementos que conformariam a identidade do País, nada mais natural e conseqüente do que o surgimento e aceitação dos próprios artistas de outras camadas sociais.
Artistas emergentes do povo, como Vitalino, Severino de Tracunhaém, Cardosinho e Heitor dos Prazeres, encarnaram para a nova mentalidade esse movimento de mão dupla, de encontro. Por sua vez, entre os artistas da norma culta, Cândido Portinari (1903-1962) retratava a vida cotidiana das camadas de baixa renda no campo e nas cidades; Alberto da Veiga Guignard (1896-1962), Roberto Burle Marx (1909-1994), Di Cavalcanti (1897-1976), Tomás Santa Rosa (1909-1956) e José Pancetti (1904-1958) retratavam empregadas domésticas, fuzileiros e trabalhadores urbanos e rurais; e Tarsila do Amaral (1890-1973) abordava a paisagem brasileira, a religiosidade popular e o operariado paulistano, já incorporando, à escala cromática de uma de suas fases, os azuis e rosas que chamava de "caipiras".
Ainda entre os artistas da norma culta, o escultor Victor Brecheret (1894-1995) realizou extraordinária obra em São Paulo, com uma fase onde um repertório de formas de arte indígena é profundamente absorvido. Vicente do Rego Monteiro (1899-1970), por sua vez, transfunde elementos indígenas marajoaras em momentos de linguagem formal de sua pintura; e Alfredo Volpi (1896-1988), autodidata e trabalhando à margem de movimentos, funde elementos visuais do popular à linguagem erudita, seja através da figura, da abstração ou da síntese simbólica de ambas.
São estes uns poucos exemplos, retirados do quadro das artes visuais dos anos 20, 30 e 40, que mostram o interesse dos artistas eruditos pelo universo das classes populares e pelas culturas tribais. No entanto, é preciso ressaltar que os próprios artistas das camadas pobres não foram em absoluto agentes passivos do seu processo de reconhecimento pelas elites. Por seu lado, experimentaram as mudanças desencadeadas pela industrialização e pela era do rádio, transformando-se também. O mestre Vitalino, por exemplo, partiu da relativa uniformidade do figurado de barro feito antes na sua região como brinquedo de criança - daí o termo "bonecos" - para o que seus amigos e companheiros de ofício, numa clara indicação da consciência da renovação visual que tinha lugar no Alto do Moura, em Caruaru (Pernambuco), chamavam de "inventação de motivo de boneco". Renovação que terminou por dar origem a uma verdadeira "escola" de ceramistas naquela localidade, onde hoje 160 famílias vivem da arte do barro.