A dança que mora no Brasil tem duas maneiras básicas de se relacionar com o país: faz ou não faz dele tema de sua irradiação estética. Herança do convívio entre uma concepção importada das cortes européias e outra, nascida nas celebrações dos primeiros habitantes, a nossa dança cênica carrega a ambivalência primordial típica dos países que foram colonizados.
Às vezes, é joão-de-barro (quando constrói a casa e o nome); e noutras, usa mão única e não se volta e nem abre para o local onde mora. No seu miolo, contudo, opera com intensidades variadas nas franjas das duas formas, naquela zona onde algo de ambas se toca - que é o que, geralmente, imprime a textura que a distingue.
Na história recente, o embate mais importante entre o "to be or tupi" foi travado pelo Ballet Stagium, de São Paulo, quando, nos anos 70, decidiu fazer o balé trazido da Europa "falar português". Décio Otero e Márika Gidali, seus diretores, não apenas buscaram temas, autores, músicas e colaboradores brasileiros, como se dedicaram a hibridar na técnica do balé clássico movimentos recolhidos nas danças populares brasileiras.
Duas décadas antes, no Rio de Janeiro, a companhia do Teatro Municipal havia tentado outra forma de sintonia com seu entorno. Acreditando que para fazer dança brasileira bastava usar música e temas nacionais, passou a produzir obras de estrutura idêntica às estrangeiras, às quais os coreógrafos adicionavam algum "toque típico", tipo apresentar índios em sapatilhas de ponta, mas vestindo malhas cor da pele para produzir a impressão de nudez.
Apesar de falsa, esta convicção encontrou ventos semeadores. Sempre que se assiste, ainda hoje, a uma coreografia onde o assunto parece um adereço, sem força para promover mudanças na gramática da obra, se está esbarrando num filhote daquela crença.
Nela, artistas como o pernambucano Toninho Nóbrega ou a mineira Graziela Rodrigues promovem um oásis. Não apenas porque não partem do fora para chegar ao dentro, mas principalmente porque fazem coabitar todas as misturas nesse dentro.
Com Graziela Rodrigues, são as culturas das minorias que ganham outro corpo: negros, candomblé, índios. Na carreira de Toninho Nóbrega, um artista que vivenciou as feiras populares, se encontra um excepcional exemplo do trânsito entre todas as artes que domina, da cantoria ao teatro, à música, ao circo, à dança, como também faz com que esse fluxo modifique cada uma delas.
Especificamente com balé, atualmente é Rodrigo Pederneiras quem vem abrindo os canais para uma fluência nova. Coreógrafo do Grupo Corpo, quebra e dobra o eixo vertical da técnica do balé com sinuosidades, requebros e dinâmicas mais típicas dos sujeitos das ruas que das línguas usadas nos teatros.
Não há platéia estrangeira que deixe de identificar como "brasileira" a dança de Toninho Nóbrega, Graziela Rodrigues ou Rodrigo Pederneiras.
Fora do balé, pioneiras como Renée Gumiel e Ruth Rachou, por exemplo, cuidaram de sintonizar o Brasil à modernidade nesta segunda metade do século. Mais que espetáculos, ambas criaram escolas que se tornaram centros de referência para quem buscava uma conexão com o seu tempo.
Nos anos 70, coube ao Teatro Galpão e, em seguida, ao Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), ambos em São Paulo, concentrar o melhor da inovação. Passaram por seus palcos profissionais como Sônia Mota, Ivaldo Bertazzo, Célia Gouvea e Maurice Vaneau, Mara Borba, Antonio Carlos e Iracity Cardoso, Marilena Ansaldi, Denilto Gomes e Janice Vieira, Clarisse Abujamra, Suzana Yamauchi, Penha de Souza, J.C.Violla e Naum Alves de Souza, Ismael Ivo e mais o Grupo Endança, o Grupo Ex, o Cisne Negro.
Hoje, resíduos dessa época são rastreados naqueles que avançam as suas pesquisas de linguagem: Helena Bastos, Regina Miranda, Vera Sala, Lia Rodrigues, João Saldanha, Gisela Rocha, João Andreazzi, Márcia Milhazes, Márcia Bozon, Thelma Bonavita, Eva Schull, Sandro Borelli, Kleda Muhana e Betty Grebler, entre outros.
Assim como há sotaques, cozinhas e hábitos regionais distintos que se abrigam debaixo do mesmo "teto brasileiro", também a dança cênica que acontece nos nossos palcos se impregna destas variedades geográficas, e as tempera com outras, vindas de além-fronteiras.
Mas fronteiras, num mundo de Internet, têm o seu velho sentido territorial modificado. O corpo dos brasileiros pratica este mesmo sentido desde sempre. Habituado à vastidão das nossas extensões, sabe que só pode produzir dança brasileira no plural. E que sua singularidade vem justamente daí.